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Dórico


por Luciana Gerbovic


Abro a garrafa. Nunca sei o que dizer. A rolha arroxeada me convida, faço uma reverência interna nessa entrega a um passado desconhecido. Também tenho meus segredos amadurecidos em barris. Muitos de um vermelho quase sangue, alguns rubis, uns machucados pelos bicos dos melros, tantos pisoteados, vou saindo aos poucos da garrafa em aromas e cores e lembranças, a maturidade alcançada na flexibilidade do carvalho, deixo para trás o que não me cabe mais. Crescimento paciente. Não posso deixar de olhar o tinto caindo na transparência da taça, uma onda em formação que se adapta ao recipiente com sabedoria, a estrutura das bolhas, não deixe de olhar porque elas também têm seus segredos efêmeros. Atente-se. Viu? Não estão mais lá. Tinham estrutura enquanto duraram. Precisamos respirar. Ele muda em contato com o oxigênio. Eu também.Inspirações longas, um, dois, três, um, dois, três. Pés que pisaram uvas. Um, dois, três, um, dois, três. Todo cambia. Um primeiro gole, olhos fechados, um sorriso se forma, ninguém precisa saber onde. Me mantenho assim enquanto notas identificadas e não identificadas atravessam caminhos que também nem sempre sei identificar. Nem tudo quero descobrir. Nem tudo quero saber. Ser desprovida de base como a coluna dórica e ainda assim manter-me em pé, deuses e heróis no topo. Salve Dioniso! Um brinde aos ciclos, às festas e à insânia. Mais uma taça e novas ondas e novos contornos e novas bolhas. Atente-se. Desentrelaço os pés, ainda tenho pernas livres e fortes. As mãos contornam e aquecem as taças. Faço desenhos no ar. Onde estão os lábios do amante? Ele tem grande capacidade de guarda. Eu também. Espero no silêncio para ganhar complexidade e enriquecer-me com novos componentes. Ele repousa na minha boca, suave e intenso, doce e cítrico, novo e velho. Deixe-me ficar, ele sussurra. Eu deixo. É noite de feitiçaria.