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Mundo Corporativo


por Izabel Reigada


São mais de dez anos de trabalho na mesma empresa, posso dizer que conheço bem os personagens que povoam seus departamentos. Somos pouco mais de 100 funcionários, é claro que não conheço realmente bem a todos, mas sei sobre a vida de muitos deles, mesmo fora do escritório. É uma espécie de efeito colateral do convívio diário. Quando cheguei, já havia funcionários com mais de dez e mesmo vinte anos de trabalho dedicados à empresa. Esse era o caso do Pedro Lopes.

Chefe do almoxarifado, Pedro Lopes está há 30 anos na empresa. Dizem que começou como office-boy, em uma época em que ainda não existiam menores aprendizes ou regras para regular o trabalho de quem começava tão cedo. Quando fui contratada, ele já era chefe do almoxarifado. Nunca falamos mais que o “bom dia” ou “boa tarde”, segundo o horário em que o encontrava pelos corredores. Ele, sempre seco. Como seu mau humor era notório, nunca me incomodou.

Como nas mais saudáveis relações corporativas, os funcionários falávamos muito sobre a vida dos colegas. Pedro Lopes nunca participou das conversas, mas, por vezes, era rapidamente mencionado em alguma delas. Ninguém sabia nada sobre a vida dele fora do horário comercial, então os comentários restringiam-se à falta de habilidade social do funcionário, que almoçava sozinho, nunca era visto junto à máquina de café, em uma breve pausa, ou mesmo ao lado dos bebedouros.

Quando era necessário procurá-lo, para reposição de material ou aquisição de novos itens, Pedro Lopes pedia que as solicitações fossem encaminhadas por e-mail. As respostas nunca iam além da protocolar confirmação de recebimento. Algum tempo depois, o material aparecia na mesa do solicitante. Se a urgência levasse algum funcionário até a sala de Pedro Lopes, a questão era resolvida sem a necessidade de diálogos. Mas ninguém queria entrar naquela sala, com um clima pesado, sisudo, como seu único ocupante.

No mês passado, fechamos uma grande parceria com uma empresa dos Estados Unidos. Nossos diretores foram visitar a sede na Califórnia e, no final do mês, os americanos nos visitariam. Era outubro e a dedicada equipe de Recursos Humanos teve a ideia de promover uma festa temática, um halloween, em homenagem a nossos visitantes, exatamente no dia 31, já que estariam na empresa. Foi uma bela festa, com decoração caprichada e quase todos os funcionários vestidos de preto. Para nós, haveria sorteio de brindes, o momento mais aguardado, diga-se a verdade. Não que os brindes fossem assim tão atraentes, mas havia os vinhos. Três kits com duas garrafas cada. Entre elas, havia um Chardonnay chileno que era meu objetivo. Mas o sorteado foi Pedro Lopes.

Ele realmente não queria ganhar os vinhos. Era o tipo de pessoa que temia holofotes, atenções. Foi a diretora de RH quem chamou seu nome e, enquanto aplaudíamos, Pedro Lopes caminhava para o palco mudando de cor. Acho que estava roxo, mas poderia ser um tom mais próximo do azul. Recebeu o kit e falou um rápido e baixo “obrigado”. Mas a diretora de RH esperava mais: “Parabéns, Pedro Lopes. Um dos funcionários mais antigos da empresa. Conta um pouquinho sobre sua experiência aqui.”

“São 32 anos”, disse, dando as costas para a diretora e correndo para fora do palco. Não houve chance de chamá-lo de volta e o sorteio continuou. Vi que Pedro caminhou para uma das mesas e serviu-se de um copo de água. Não resisti e me aproximei. “Que belo prêmio, Pedro. Vai experimentar algum deles hoje?”, perguntei, trocando mais palavras com o colega naquele momento do que nos últimos dez anos. “Eu não bebo”, ouvi, secamente como havia escutado os bons dias e boas tardes anteriores.

“Ainda assim é um bom prêmio. Você pode presentear alguém com elas. Qualquer um gostaria do presente”, continuei. “Por que essa festa horrível?”, ele perguntou, de repente. E pensei que talvez Pedro não soubesse do contrato com a empresa da Califórnia e nem imaginasse que os desconhecidos de terno escuro não eram novos funcionários, mas os diretores vindos dos Estados Unidos. Pedro não falava com ninguém. Ninguém falava com Pedro. Contei resumidamente sobre as novidades e disse que o tema da festa era o dia das bruxas, comemorado naquela data, uma festa muito tradicional nos Estados Unidos.

Ele olhava interessado, enquanto eu falava. Tirou uma das garrafas e me deu. “Não, não precisa fazer isso, Pedro Lopes. Experimente o vinho, talvez você goste”, disse. “Pode ficar. Eu não bebo. A outra também vou dar de presente.” Foi nessa hora que a curiosidade me dominou e perguntei, em voz um pouco mais alta, porque Pedro já estava próximo à porta, saindo da festa. “É mesmo? Para quem?”. “Para elas. Hoje não é o dia das bruxas, como você disse?” e saiu. Ganhei meu Chardonnay, sem saber se era um agradecimento pela rápida conversa ou um insulto pelo dia das bruxas, e nunca mais trocamos algo além do bom dia.