O calor era intenso demais para o final de outubro. Como se o verão tivesse pressa em se instalar no vale, que dois meses antes exigia de seus visitantes casacos felpudos e cachecóis de lã. Embora fosse esperado, o calor não deveria ser tão forte naquela última semana de outubro. Ramiro Gomez sabia disso, porque visitava anualmente a região naquela semana. Era parte da pesquisa que o professor da Universidade Católica do Chile realizava. O biólogo deixava Santiago e dirigia para a região do Vale Central chileno todos os anos, na mesma época, há mais de duas décadas. Era na primavera que analisava os efeitos do último inverno na região e verificava o que esperar das próximas estações.
Enquanto subia uma pequena colina para observar do alto as parreiras podadas, sentia o calor e arrependia-se por não ter feito a caminhada pela manhã. Sair no meio da tarde não fora uma boa ideia. Sentindo o calor, pensava na primeira vez em que visitara a região, ainda para a pesquisa de graduação na universidade. Fazia frio no vale, espremido entre as duas cordilheiras, a da Costa, que deixava passar os ventos do Pacífico, e a dos Andes, que mandava duras rajadas geladas das maiores altitudes das Américas. Agora, até o sopro vindo dos Andes parecia aquecido.
Subindo, Ramiro lembrou que achou a região perfeita para começar os estudos sobre mudanças climáticas, começando ali o trabalho que ainda não imaginava que seria de toda uma vida. Como a região era uma das principais produtoras de vinho do Chile – e o vinho destacava-se nas exportações chilenas –, as condições climáticas do Vale Central eram acompanhadas de perto. Havia estudos dos anos anteriores, não precisaria começar a pesquisa do zero. Foi olhando para os números dos anos passados que constatou que a região refletia o aumento da temperatura já desde a metade do século 20.
As mudanças faziam com que os vitivinicultores instalados ali antecipassem ou atrasassem a colheita, o preparo do vinho, a poda das parreiras. Desde o século 19, imigrantes franceses e espanhóis plantavam vinhas no vale, que oferecia as condições ideais para o cultivo das uvas e a fabricação do vinho, com inverno rigoroso e verão seco. Já no alto da colina, Ramiro observava as parreiras. Anos atrás, todas estavam secas. Podadas e sem qualquer sinal do verde das folhas nas longas filas de vinhas. Agora, observava que o verde já aparecia em muitas delas, sinal de que as primeiras chuvas também tinham chegado.
Foi quando sentiu um vento frio. Olhou para o alto e viu a aproximação de nuvens pesadas. Com a certeza de que choveria a qualquer momento, decidiu seguir adiante e buscar abrigo em uma das vinícolas próximas. Caminhava rapidamente em meio a uma mistura de sensações térmicas, estranhando o vento frio, apesar do calor que ainda fazia. Pensou no prazer de tomar um Chardonnay, uma das uvas abundantes da região. A plantação que acabara de observar era certamente dessa uva.
Começava a chover, quando observou os portões da vinícola, ainda distantes. À esquerda, um senhor escondia-se da chuva em uma espécie de abrigo que protegia o local onde os cavalos podiam tomar água. Correu para lá. “Buenas”, cumprimentou o senhor, bastante idoso, que se sentava junto a um tronco. Ramiro sentou-se em uma pedra, diante do senhor, e falou algo sobre a chuva. “Sempre há tempestades no dia de hoje. Começa no dia das meigas e termina no dia dos mortos”, disse o velho. “O senhor vive aqui? O que é o dia das meigas?”
Em meio à tempestade e aos raios que se ouviam ao longe, o velho falou sobre as meigas, como eram chamadas as bruxas em galego. “O dia de hoje é de festa na Galícia, de onde veio meu pai. Fazem a Queimada, bebida forte para afastar as meigas, e no final da cerimônia todos fazem um pedido. E logo acontece. Porque as meigas não atrapalham e a Queimada ajuda”, contou. Ramiro pensou em como seria a bebida e quanto dela os galegos tomariam até imaginar seus pedidos virando realidade.
“Tenho aqui. Quer provar?”, ofereceu o velho, de repente. “Claro”, respondeu Ramiro, curioso. “É preciso fazer o conjuro. Repita o que eu digo:
Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demônios, trasgos e diabos,
Espíritos dos enevoados campos,
Corvos salamandras e bruxas:
Feitiços das curandeiras,
Podres tocos de árvores furados...”
Ramiro não conseguia acompanhar, mas tentava repetir as estranhas palavras. Depois, pegou a garrafinha de vidro com a rolha destapada e provou. Era como imaginara: uma aguardente com mais coisas do que podia supor e de gosto horrível. Devolveu para o velho pensando que nunca havia provado algo tão ruim. Mais que nunca, desejava agora aquela taça de Chardonnay. E foi quando achou que estava vendo coisas. Alguém abria os portões da vinícola, distante, e caminhava em direção a eles. Parecia uma mulher, que andava lentamente apesar da chuva, já mais fraca. Nas mãos, havia uma cesta.
“Eu já vou. Essa chuva não vai parar até depois de amanhã. E é melhor chegar em casa antes de escurecer. Hoje é o dia das meigas”, disse o velho, levantando-se com uma agilidade que parecia impossível para ele. Ramiro olhava o velho partir, para um lado, e a silhueta da moça, que via melhor agora, aproximar-se.
“Buenas. Esta chuva não vai parar. Dura três dias. Melhor seguir viagem ou voltar para casa”, disse a moça. “Sim, vou voltar. Mas acho estranho. Sempre visito a região nessas datas e nunca havia pego chuva. Mas aquele senhor também me disse que a chuva durará alguns dias...”
“Não, não. Aqui sempre chove. Na data de hoje, sempre. Todos os anos. Tem certeza de que já esteve aqui antes, nesse mesmo dia?” Ramiro já não sabia. Sempre visitava a região na última semana de outubro, mas agora não tinha certeza se ficara até o dia 31, embora acreditasse que sim, já havia estado lá nessa data. Enquanto pensava que caminho tomar para voltar à pousada, ainda que molhado, ouviu a moça oferecer:
“Quer uma taça de vinho. Tenho apenas Chardonnay. Aceita?”